
“O progresso, o otimismo devem ceder diante da fatalidade das leis eternas da nossa natureza e de nossa condição”
Jean-Marie Poursin
Já falei e ainda volto a falar das grandes turbulências da alma, inquietações oriundas dos mais diversos perigos e das mais variadas frustrações, tudo que se apresenta diante de nossos olhos e nos enche de terror, como o próprio pintor espanhol, Francisco de Goya, assombrado com sua época, homem culto de seu próprio tempo, artista universal que pintou a realidade diversificada de uma Espanha agitada e conflituosa.
Goya captou as mil expressões de cada momento vivido intensamente, viu a loucura de perto e transportou as imagens captadas na sua retina psicológica para suas obras artísticas repletas de vida em movimento. Pintou os sabás medievais de bruxaria, resgatou as imagens de diabos e feiticeiras, prostitutas que apesar de velhas e flácidas, ainda ardiam de desejos orgíacos, sonhando com grandes membros fálicos enterrados em suas vaginas.
O pintor espanhol não limitou-se em um só tema, mergulhou na diversidade infinita de produção e expressão artísticas, pintou conflitos sociais, guerras e massacres, injustiças sociais, violências e barbáries, transfigurando seus traços para imagens de monstros disformes e colossos gigantes, rostos deformados pelo desespero onde a expressão de horror vinha estampada nos traços mórbidos dos seus personagens. Pintados em sombrias pinceladas!
Goya captou o grande conflito dentro e fora da alma, fez parte do conflito, viveu como um personagem envolvido em sua própria história, superou-se porém com sua gigantesca obra, como alguém que transforma, lapidando todas as dificuldades, retribuindo de volta à mesma realidade opressora, sua arte que indica os novos caminhos para a grande marcha ao futuro.
A razão morava na alma do pintor e sendo assim comprometia-o impreterivelmente impelindo-o a uma interpretação racional e superior a todo senso comum que chafurdava no lodo fétido da hipocrisia social onde reinavam a injustiça e o mal. Este tipo de devaneio, comum aos grandes artistas e gênios, poetas e escritores podem manifestar dentro da alma como uma espécie de possessão ou pesadelo, então a loucura manifesta o seu poder e os monstros materializam-se de alguma forma!
Vultos vagam ao nosso redor, sombras maléficas atormentam as almas dos homens. Imagens de demônios, aqui “demônios” são os próprios homens e os “vultos” também são eles, não são seres sobrenaturais que nos assaltam, mas são humanos...
Mas o que vem a ser esta “razão” tão estranha ao mundo onde quase noventa por cento da população vive mergulhada nas trevas de uma idade-média atrasada e estagnada no tempo, pois não existe um sentido racional para todo esse gado errante! Nestas horas de febre racional, a temperatura do nosso corpo aumenta e os batimentos cardíacos também, mergulhamos assim no pesadelo da nossa própria realidade onde devemos prestar contas das nossas atitudes bem ou mal planejadas de acordo com as nossas aspirações e limitações. Uma hidra horrenda quer devorar a nossa alma, um monstro terrível quer de uma vez por todas aniquilar nosso avanço!
Quando mergulhamos na plenitude da nossa razão, surgem os roedores da nossa própria consciência e tudo quer desmoronar sobre nossas cabeças como se um violento terremoto fizesse vir ao chão tudo que construímos com sacrifício. Para ilustrar o grande cenário épico onde se desenrola o desfecho das nossas vidas, os tormentos de ordem externas provocam aquilo que chamamos em literatura de “pesadelos do inferno”. Já falei do inferno, mas esse horrendo mundo de dor e sofrimento é um lugar imenso, repleto de poços e galerias, buracos e cavernas subterrâneas onde o fogo não se apaga e o desespero não tem fim. Dante também falou-nos do inferno, por isso não é necessário relembrar os mais horrendos sofrimentos que as almas padecem nestas galerias de dores eternas.
O mundo globalizado gera muito conforto para quem consegue acompanhar todo o avanço tecnológico de computação e progresso, por outro lado gera um enorme desconforto e insegurança nos indivíduos que não estão à altura desta nova era...
Este lado lúgubre da globalização gera enorme exclusão de indivíduos, rotos que em suas misérias, acabam gerando o grande caos a por em cheque toda segurança da civilização. De minha parte, já impregnado de pessimismo realista espelhados em Hartmam e Cíoram, adivinho o resultado de toda esta realidade que nos engole semi-vivos, quase mastigados por inteiro de corpo e alma.
Este avanço do mal extirpa inexoravelmente a expectativa de prosperidade num presente e futuro melhores. E nesta rigorosa seleção econômica somente os mais astutos avançam!
O sentido da nossa “civilização”, se é que assim podemos chamar esta coisa, já se perdeu há um bom tempo. E não existe uma razão de ser, e como a horrenda face da medusa onde contorcem dezenas de cobras no lugar dos cabelos, assim podemos descrever os traços monstruosos onde será vítima certeira quem nela pousar os ingênuos par de olhos na curiosidade de saber o que realmente se passa ao nosso redor. Mas eis que surgem também espectros escabrosos como um vapor etéreo a formar imagens de grandes ameaças e no meio da noite morta, atormentam o sagrado sono provocando pesadelos e até a insônia em casos mais graves. Se falo de horrores, pesadelos e coisas monstruosas, é porque a razão assim decretou a tais descrições. Talvez este texto confuso, abstrato e etéreo se apresente até meio contraditório, afinal não é nada fácil traduzir em palavras, sentimentos profundos oriundos da sensibilidade errante num vale de abismos e rochas gigantes onde percorrer um caminho seria algo incerto e perigoso.
Todo sentimento ruim, desagradável, repleto de ódio, ranço, vingança, é fruto de uma parcela mínima de razão, afinal ver tudo por um enorme telescópio alcançando assim até o alvo mais longínquo, ou mesmo vendo tudo pelo microscópio vendo até o mais insignificante micróbio, não é tarefa para qualquer indivíduo. Afinal, existem universos e mundos paralelos onde ocorrem uma infinidade de coisas vividas e sentidas por diferentes pessoas e vistas por diferentes ângulos!
O mundo é a diversidade das coisas, sendo assim, se apresentará sempre confuso e sem razão de ser em si mesmo, e neste acaso onde reina a injustiça, será inútil os nossos clamores e as nossas queixas individuais. Não seria necessário dissertar muito e se aprofundar para descrever e provar todos os males que os seres humanos são capazes de fazer uns para outros, e além disto temos ainda o agravante de que também as outras espécies viventes também estão ameaçadas e sofrem a violência gerada pelos homens!
Nos filmes de monstros, onde o cinema alcançou perfeitas reproduções de criaturas gigantes, elas se apresentam sempre como a encarnação do próprio mal.
O homem então descarrega uma verdadeira tempestade de chumbo e fogo onde exércitos, canhões e armas de última geração atiram nas criaturas até a morte...
Sim! Não há espaço para os monstros dentro das “civilizações modernas” feitas pelos homens, porque os verdadeiros monstros já habitam lá!
No clássico “King Kong” (1933), podemos entender melhor esta questão, ou seja, não bastava apenas salvar Anne do Gorila gigante, mas era necessário, atirar no gorila, ferí-lo com bombas, adormecê-lo, acorrentá-lo, exibí-lo para a civilização, ganhar fortuna escarnecendo aquela raríssima espécie vivente, talvez a última da sua própria raça. Expondo-o ao ridículo num grande circo. Mas King Kong reage, arrebenta tudo, é claro! Afinal, era um gorila selvagem, livre e agora se via acorrentado pelas artimanhas de seu pior inimigo, o homem! Então é muito óbvio que ele destruísse toda a cidade, os carros e o metrô, gerando caos em toda população. Já não havia na cidade belas árvores gigantes como em seu habitat natural, então era obrigado a subir em prédios.
Um exército inteiro é acionado e por fim, após ser metralhado sem piedade e do alto de um dos maiores prédios do mundo, o “Empire States”, ele se despenca agonizante para a morte! Que tragédia singular, comovente, rica em mensagens para meditarmos em até que ponto os homens podem chegar na ganância de querer ser os mais ricos e poderosos.
Disseram que foi a beleza de Anne quem matou o monstro. Em certo aspecto concordo, mas que o monstro foi metralhado cruelmente, disto não tenho dúvidas!
Não precisaria buscar imagens nem no cinema e nem na literatura para poder esboçar a caricatura monstruosa dos homens, bastaria citar alguns casos recentes ocorridos, onde animais selvagens são mortos brutalmente. A tragédia que se abate sobre os outros seres vivos além do homem, é tão grande quanto a própria tragédia representada pelos homens apenas. Acontece que somente o homem é o grande centro “racional” do mundo, por isso se acha e se diz melhor que as outras espécies ao passo que ele, o homem, nada mais é do que apenas mais uma espécie no meio da bio-diversidade de seres vivos!
O título sugestivo deste texto com seu titulo original em Espanhol, “El Sueno de la Razon Produce Monstruos”, é na verdade uma imagem, um desenho produzido por Goya em 1797-1798 aproximadamente. Neste desenho, o artista está debruçado sobre uma mesa onde em sua volta em forma de visão de sonhos nebulosos, animais como burros, morcegos, corujas com rostos quase humanos atormentam o sono, flutuando no espaço vazio como se o autor estivesse tendo um confuso pesadelo onde a idéia central seria tentar identificar todas as vulgaridades, mentiras, maldade, arrogância e hipocrisias prejudiciais existentes nos meios sociais.
Este famoso desenho faz parte de uma série de gravuras produzidas pelo pintor intitulada “Los Caprichos”.
Que genialidade impressionante traduzida na expressão de alguém que faz uma interpretação minuciosa dentro da alma revelando um verdadeiro conflito também dentro daquilo que somos. Existe no desenho o traço característico da personalidade do indivíduo que o produziu e esta regra é para todos, ou seja, não basta somente o tema escolhido para representar nos traços, mas os próprios traços muito já nos revelam deste trabalho ulterior de interpretação e mensagem onde no final, uma imagem que ainda não existia no papel ou tela em branco, passa então a existir após este trabalho estético.
Goya tem muito a nos ensinar, muito mesmo, e não somente em matéria de artes mas da própria vida em si mesma onde as nossas paixões se transfiguram de maneira tão singular e realista.
Quantas vezes eu, adormecido num momento de grandes conflitos e tensões com minha própria realidade, vi-me cercado de visões à atormentar minha alma.
Falsos amigos que na minha ausência, conspiravam contra mim com calúnias, invejas e maldições, transformavam-se em mutantes degenerados e ameaçadores pondo em risco todos os meus projetos de evolução e cultura. Ha! O que fazer com aqueles piolhos???
Atormentado, tudo parecia estar contra mim, conspirando para a minha aniquilação e destruição daquilo que eu era e daquilo que eu pretendia ser, e como eu padecia o jugo da falsidade hipócrita a rir de mim e decretar minha ruína e morte!
Ah! Os amores malogrados, os amores impossíveis, os amores traídos, enfim, cheio de razão ao amar algumas mulheres, impregnado de uma ingenuidade até infantil, o amor era puro e cheio de expressão poética e de repente as belas mulheres e musas idealizadas viravam pandemônios, cobras venenosas, víboras fatais, bruxas demoníacas a desencadear o ódio espumoso das suas entranhas contra mim!
Que pesadelo era toda esta macabra transformação ao nosso redor e ninguém parece digno daquilo que somos ou tentamos ser...
No meio destes tormentos, mil demônios nos arrastam pelos cabelos. Posso descrever isso porque fui arrastado por uma legião deles e o meu corpo esfolado pelo duro sofrimento, cambaleou exausto de tanta miséria, traição, falsidade, inveja e hipocrisia dos que nos cercam como os mais dignos! Quantos monstros nos cercam e quantos podem nascer no fumo dos nossos devaneios angustiosos onde ninguém e nada nos poderá salvar a não ser nós mesmos, e será sempre assim, um conflito com tudo e todos indo de encontro à falsa doutrina de paz e calmaria que apregoam os velhacos, sustentando uma “filosofia” de vida pra lá de suspeita e enganosa.
E como se não bastasse todos estes terrores gerados por estes monstros, em Byron encontrei impressionante citação pessimista:
“A morte ri – ide meditar sobre o esqueleto que para os homens é a imagem do desconhecido que oculta o passado, como um poente que algures se transforma em resplandecente aurora. A morte ri de tudo o que chorais: olhai esse constante terror dos terrores cuja foice ameaçadora, mesmo embainhada, faz da vida um pesadelo. Reparai como na sua boca descarnada há um horrível arremedo de sorriso. Olhai como a morte ri e desdenha de tudo o que sois!”
O sono da razão produz monstros, pesadelos, visões, torturas, medos, angústias e pesares a ponto de chegar-se na seguinte conclusão: que talvez fosse melhor viver sem razão, viver apenas e deixar viver, com indiferença fria, viver o momento fugitivo e não contestar nada, ser apenas mais um ou menos um no meio de tantas coisas absurdas!
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